Cabeça de ferro | 2019
óleo sobre tela
220 x 180 cm

Fuzileiro | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Amigo do Mártir | 2020
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Manhã de louco | 2020
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Jokerman | 2019
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Contrato III | 2019
acrílica e óleo sobre tela
170 x 140 cm

Sísifo III | 2017
óleo sobre tela
31 x 23 cm

Vini | 2020
óleo sobre tela
140 x 110 cm

Toalha de mesa | 2019
óleo sobre tela
170 x 140 cm

Sem título | 2019
spray, gesso acrílico, óleo e pasta de alumínio sobre tela
200 x 250 cm

Dilúvio | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
200 x 250 cm

Sol | 2018
óleo sobre tela
24 x 18 cm

Sem título | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 120 cm

Sem título | 2016
óleo sobre tela
26 x 20 cm

Contrato II | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 120 cm

Lipstick | 2019
óleo e pasta de alumínio sobre tela
100 x 80 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Cabeça de ferro | 2019
óleo sobre tela
220 x 180 cm

Fuzileiro | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Amigo do Mártir | 2020
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Manhã de louco | 2020
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Jokerman | 2019
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Contrato III | 2019
acrílica e óleo sobre tela
170 x 140 cm

Sísifo III | 2017
óleo sobre tela
31 x 23 cm

Vini | 2020
óleo sobre tela
140 x 110 cm

Toalha de mesa | 2019
óleo sobre tela
170 x 140 cm

Sem título | 2019
spray, gesso acrílico, óleo e pasta de alumínio sobre tela
200 x 250 cm

Dilúvio | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
200 x 250 cm

Sol | 2018
óleo sobre tela
24 x 18 cm

Sem título | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 120 cm

Sem título | 2016
óleo sobre tela
26 x 20 cm

Contrato II | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 120 cm

Lipstick | 2019
óleo e pasta de alumínio sobre tela
100 x 80 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Cabeça de ferro | 2019
óleo sobre tela
220 x 180 cm

Fuzileiro | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Amigo do Mártir | 2020
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Manhã de louco | 2020
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Jokerman | 2019
óleo sobre tela
200 x 150 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Contrato III | 2019
acrílica e óleo sobre tela
170 x 140 cm

Sísifo III | 2017
óleo sobre tela
31 x 23 cm

Vini | 2020
óleo sobre tela
140 x 110 cm

Toalha de mesa | 2019
óleo sobre tela
170 x 140 cm

Sem título | 2019
spray, gesso acrílico, óleo e pasta de alumínio sobre tela
200 x 250 cm

Dilúvio | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
200 x 250 cm

Sol | 2018
óleo sobre tela
24 x 18 cm

Sem título | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 120 cm

Sem título | 2016
óleo sobre tela
26 x 20 cm

Contrato II | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 120 cm

Lipstick | 2019
óleo e pasta de alumínio sobre tela
100 x 80 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 130 cm

Bruno Dunley 2020

Bruno Dunley é, sem dúvida, um dos protagonistas essenciais da geração de pintores que despontou no Brasil a partir do início do século 21. A complexidade e a riqueza de sua obra – sua variedade e consistência – lhe conferem notável singularidade entre os jovens artistas do novo século.

Porque o fim da pintura – essa caricatura de uma ideia – não cessa jamais de se concluir, a não ser que, como se pode propor com argumentos eficazes, substanciais e antigos, a pintura incessantemente nasce do seu próprio término originário, Bruno Dunley é pintor. Em todo caso, ele mesmo o afirmou: tendo a pintura alcançado o dinamismo promissor da sua própria marginalidade poética ao libertar-se de toda função “de época”, os pintores encontram hoje uma liberdade invejável: já não precisam carregar o mundo nas costas.

A primeira vez que vi uma obra de Bruno Dunley – por volta de 2011 – inte­ressei-me em saber mais sobre o artista. Eu vinha de Nova York e vi emergir, desde o início do século, a enésima “ressurreição” da pintura que – para ser sucinto – tinha suas fronteiras no Atlântico Norte entre Terry Winters e Luc Tuymans. Um colega da época, Jordan Kantor – brilhante crítico e pintor – tinha publicado um artigo intitulado The Tuymans Effect 1 [O efeito Tuymans] no qual constatou, com olhar cirúrgico, o surgimento, tanto na Europa quanto na América do Norte, de uma pintura realizada por jovens artistas – Wilhelm Sasnal, Lucy McKenzie, Kai Althoff, Eberhard Havekost, Magnus von Plessen, etc. – onde as formas espectrais e esmaecidas de Luc Tuymans, intencionalmente “falhas” e voluntariamente “destreinadas”, encontravam sua interpretação mais pode­rosa. O argumento repetia – não no conteúdo, mas em sua forma – uma ideia que Clement Greenberg certa vez expressou em relação às obras de Richard Diebenkorn, nas quais afirmava ter visto o efeito da pintura de Willem de Kooning elevado a uma potência ainda maior do que aquela do próprio mestre holandês da pintura expressionista abstrata americana.

Desde aquele primeiro encontro ficou claro para mim que havia em Dunley muito mais do que um “efeito Tuymans”: havia, antes de tudo, uma certa tradição da pintura brasileira que transparecia em seus trabalhos – de Alfredo Volpi a Rodrigo Andrade e Paulo Pasta – assim como havia o domínio evidente na conjunção e na articulação entre a dimensão pictórica do plano e a potência imagética do esquema.

Bruno Dunley é um pintor que se interessa por esquemas, diagramas, pinturas rupestres. Sua obra contém um repertório fascinante de diagramas sabiamente filtrados pela espessura da imagem pictórica, por vezes como se a matéria, que faz a imagem na pintura, suspendesse em um limbo – isto é: des/trabalhasse – tudo aquilo que o esqueleto diagramático da imagem pode realizar na pintura. Assim, nessa espécie de nova neutralidade, que é de fato um estado de iminência, esquema e pintura apresentam-se no drama extraordinário de suas tensões poéticas, criadoras.

Encontro uma fruição muito especial – um prazer – nas obras de Dunley, que foram levadas a um difícil estado onde algo pode ou não acontecer na imagem que parece ainda não sair da categoria de enteléquia. “O prazer nunca é um des­canso”, escreveu Ramón Gaya, pintor que escolheu a marginalidade em meio à modernidade: enteléquia denota, no léxico secular de Aristóteles, aquilo que faz com que o possível surja do seio de outros possíveis, a possibilidade da potência, algo como a potência – na reserva – da potência.

As obras de Dunley – mesmo aquelas de sua produção inicial, nas quais o pintor parecia buscar o silêncio da imagem, enfatizam essas tensões. Nesse sentido, o que constitui a imagem na pintura – uma verdade complexa que conhecemos com absoluta clareza desde Velázquez – não é tanto a imagem em si, mas aquilo que virá a acontecer nela. Esta abertura para o futuro da figurabilidade, esta iminência da figura que se encarna em uma das suas formas possíveis no avatar da sua percepção, esta instabilidade parturiente da imagem quanto ao seu futuro – este estado de coisas por vir na imagem- é algo que a pintura, talvez melhor que outros meios mais equivalentes ao tempo real da época contemporânea, é capaz de produzir como sua diferença específica.

Bruno Dunley apresentou na 33ª Bienal de São Paulo, no âmbito da instalação organizada por Sofia Borges, uma pintura que me seduz assim como me intriga: a sua imagem representa o esquema concebido por Alfred Barr para explicar os caminhos históricos da abstração moderna. É um diagrama bem conhecido, mil vezes reproduzido e comentado ad infinitum: é, se quiserem, o próprio esquema do cânone moderno. Nessa obra, Dunley transformou – ou melhor: transfigurou o diagrama de Barr (im)precisamente em uma abstração. Ironia extrema, mas não só isso: por todos nós sabermos que nenhuma pintura se esgota em sua imagem, no quadro de Dunley os vetores esquemáticos desse diagrama aparecem soltos, sem nomes, em estado de deriva, sobre um fundo tempestuoso e lilás. Em seus trabalhos mais recentes – incluindo alguns presentes nesta exposição – os vetores dão sus­­tentação a festivas figuras circulares, serpentinas – uma assinatura de Dunley. A deriva da abstração é um jogo que só é possível a partir da emancipação que significa não ter que carregar nas costas o peso – da representação – do mundo.

Por volta de 1980, o grande filósofo Gilles Deleuze se perguntou qual legado a pintura poderia deixar para a filosofia. Sua resposta, enigmática, foi a seguinte: o conceito de diagrama, a noção de diagrama pictórico. Para Deleuze, essa dimensão diagramática da pintura faz-se – como nas obras de Dunley – com manchas e traços, mais que com cores e linhas. Mas sobretudo, Deleuze viu no diagrama, no esquema, ou na imagem rupestre que “ia até o fundo do futuro” – segundo a frase marcante de Merleau-Ponty – a possibilidade de desfazer a semelhança com mão emancipada. A mão solta capaz de produzir uma imagem sem semelhança desconstruindo, assim, a mesquinhez binária entre abstração e figuração: uma imagem que, ao desfazer a semelhança sem deixar de ser “figurativa” teria o privilégio errático de ser apenas uma imagem-que-se-apresenta, uma imagem na presença, uma imagem destra­balhada pela presença que nela vem.

1 Kantor, Jordan. “The Tuymans Effect: Wilhelm Sasnal, Eberhard Havekost, Magnus von Plessen”, Artforum, Novembro 2004.

Audiência, da série Bestiário | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
220 x 300 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Picadilha | 2019
óleo e pasta de alumínio sobre tela
220 x 180 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
30 x 24 cm

Dilúvio III, da série Bestiário | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
240 x 320 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
60,5 x 53 cm

Sem título | 2020
óleo sobre tela
90,2 x 80,3 cm

Menino | 2018
acrílica e óleo sobre tela
160 x 130 cm

Formiga I | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 130 cm

Antônio | 2018
óleo sobre tela
30 x 24 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 120 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
24 x 30 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
24 x 30 cm

Virá | 2020
óleo sobre tela
226 x 281 cm

Dilúvio IV | 2015/2019
óleo sobre tela
40 x 30 cm

Uma saudade, um sonho | 2015/2019
óleo sobre tela
160 x 120 cm

Every Hour | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Audiência, da série Bestiário | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
220 x 300 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Picadilha | 2019
óleo e pasta de alumínio sobre tela
220 x 180 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
30 x 24 cm

Dilúvio III, da série Bestiário | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
240 x 320 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
60,5 x 53 cm

Sem título | 2020
óleo sobre tela
90,2 x 80,3 cm

Menino | 2018
acrílica e óleo sobre tela
160 x 130 cm

Formiga I | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 130 cm

Antônio | 2018
óleo sobre tela
30 x 24 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 120 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
24 x 30 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
24 x 30 cm

Virá | 2020
óleo sobre tela
226 x 281 cm

Dilúvio IV | 2015/2019
óleo sobre tela
40 x 30 cm

Uma saudade, um sonho | 2015/2019
óleo sobre tela
160 x 120 cm

Every Hour | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Audiência, da série Bestiário | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
220 x 300 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Picadilha | 2019
óleo e pasta de alumínio sobre tela
220 x 180 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
30 x 24 cm

Dilúvio III, da série Bestiário | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
240 x 320 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
60,5 x 53 cm

Sem título | 2020
óleo sobre tela
90,2 x 80,3 cm

Menino | 2018
acrílica e óleo sobre tela
160 x 130 cm

Formiga I | 2018
óleo e pasta de alumínio sobre tela
160 x 130 cm

Antônio | 2018
óleo sobre tela
30 x 24 cm

Sem título | 2019
óleo sobre tela
160 x 120 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
24 x 30 cm

Sem título | 2018
óleo sobre tela
24 x 30 cm

Virá | 2020
óleo sobre tela
226 x 281 cm

Dilúvio IV | 2015/2019
óleo sobre tela
40 x 30 cm

Uma saudade, um sonho | 2015/2019
óleo sobre tela
160 x 120 cm

Every Hour | 2019
óleo sobre tela
200 x 250 cm

Conversas sobre Virá

ALEXANDRE WAGNER Para começar, pensei em situar o conjunto de trabalhos desta exposição (Virá, 2020) dentro do que você fez nos últimos anos. De alguma forma, penso que você começou a tratar dos problemas apresentados aqui naquela exposição no Rio de Janeiro em 2015, Ruído. Acho que começou uma energia de liberação em alguns trabalhos daquele grupo: na pintura Sem título vermelha (2015) e na outra Sem título azul-clara (2015), por exemplo. Estou partindo dessa mostra porque a vejo como um ponto de inflexão, onde a forma como você pensava nas exposições Os nomes (2010) e e (2013) (veja mais aqui, aqui e aqui) , no Centro Universitário Maria Antonia, convivem pela primeira vez com alguma coisa diferente de fato, que consigo ver se estendendo até aqui. Você tinha uma série de características nas pinturas anteriores – um uso específico da cor mais apagada, esmaecida, talvez junto de uma repetição de procedimentos na aplicação da tinta – que vejo acontecendo um pouco neste trabalho que você chamou de Pata de cavalo, perna de bailarina (2015) e também na Drive-in (2015), embora em menor grau. Nos outros trabalhos já aparecem características diferentes. Vejo esses dois Sem título de 2015 abrirem para você novas possibilidades com os procedimentos e um novo uso da cor, uma liberação mesmo. E também é notável que essa mudança tenha sido acompanhada em grande parte pelo seu trabalho com os papéis, onde surge outro tipo de ataque, talvez um canal que você encontrou para liberar o que estivesse ainda comedido nas pinturas.

JOSÉ AUGUSTO RIBEIRO Eu também noto uma mudança nesse período. Até 2013 ou 2014, a pintura do Bruno colocava para discussão questões que pareciam referir-se, principalmente: (1) à escolha de uma imagem de referência, entre reproduções provenientes de todo canto – imprensa, internet, livros de arte, manuais, enciclopédias; (2) à transferência dessa imagem para a pintura; e (3) às formas como o resultado dessas operações se oferecia para a apreensão. Os motivos do trabalho eram sempre denomináveis, fosse a pintura figura­tiva ou não – era a representação de um bode, de uma roda gigante, ou uma pintura monocromática, mas com a carga que isso tem como categoria no campo da arte.

Por mais estranhos que fossem os enquadramentos, uma figura ou um elemento costumava centralizar a cena, a superfície do quadro. As cores eram, em geral, esmaecidas, e a atenção se voltava para as condições de uma imagem hiperprocessada se apresentar. Surgiram nesse momento também as perguntas sobre as propriedades materiais daquilo que era visto e sobre os limites da visão, da observação, porque a imagem se dispunha fugidia, embaçada, em tons rebaixados. O que parece ter mudado de lá para cá é que o foco – desde a realização da obra até a experiência do observador com ela – teria se deslocado do resultado para o processo de produção da pintura. De 2014 ou 2015 para cá, a feitura do trabalho salta à vista, ou melhor, o que se dá a ver é o curso da pintura, a pintura em processo. Mas também não é só isso. O trabalho, agora, já não parece visar à construção de uma imagem predeterminada, integral, de limites claros, ou mesmo reconhecível, como antes. Pelo contrário, o processo passou a compreender graus variados de indeterminação. E, além disso, a constituição da pintura começou a envolver operações diversas e por vezes conflitantes, com figuras e ações em superposição.

BRUNO DUNLEY Eu vejo isso também. A produção de 2015 em diante foi nessa direção de liberação, fluxo, alguma coisa nesse sentido que o Alexandre apontou como um ponto de inflexão. E acho que essa produção anterior, de 2009 a 2013, tinha algo desse procedi­mento de colocar uma camada espessa de tinta, raspá-la e interferir sobre ela.

AW Tinha uns três procedimentos…

BD … que vira e mexe aparecem nas pinturas. Mas acho que o ponto central é que no decorrer da feitura das pinturas existe uma espécie de separação entre o meu impulso de fazer, do meu desejo ou pensamento sobre o trabalho, e o resultado da pintura. Nos trabalhos realizados entre 2012 e 2013, para mim é evidente que existia uma falta, uma desconexão muito grande entre o que eu gostaria que fosse e o resultado dos trabalhos. Havia uma relação entre a cor esmaecida e essa materialidade mais espessa que poderia silenciar as imagens reconhecíveis que nomeiam o mundo, mas o que percebi naquele momento foi que, em vez de gerar um silêncio que pudesse dilatar a nossa percepção do tempo, aquelas pinturas produziam uma coisa muda e estéril. Perceber essa esterilidade no trabalho me trouxe uma vontade de movimentação e deslocamento. Refletia sobre a possibilidade de obter alguma potência cromática mais ampla que não carregasse uma narrativa tão codificada da cor. Queria experimentar a cor para inventar uma narrativa. Comecei a pesquisar uma série de experiências cromáticas ao longo da Idade Média, iluminuras etc., e passei a me dedicar à pintura e ao desenho sobre papel. Essa prática, iniciada em 2015, gerou uma liberação pela facilidade do suporte, da escala, de você poder rasgar e jogar fora. Acho que ainda carrego algumas coisas desse processo anterior. Mas, ao eliminar parcialmente um modelo figurativo que estruturava a composição e que sugeria um caminho de interpretação, o risco do trabalho era cair em um lamaçal e ficar sem lugar. Você passa a lidar com uma ideia de pintura abstrata muito complexa, muito gasta. Como é possível construir imagens sem referências de imagens? Com a pintura vindo para a frente, as operações, os processos, passam a ganhar mais relevância, mas uma imagem ainda é formada.

AW Mas vejo que você ainda mantém por um tempo essas duas formas de começar as pinturas: às vezes partindo de uma figura mais reconhecível, outras deixando a pintura mais apoiada no processo.

JAR Sim, falei da ocorrência de uma mudança, mas não quis dizer que houve rompimento. Porque certas características permanecem, surgem aqui e ali. Por exemplo, esse esforço de preenchimento completo da super­fície, a estruturação da pintura com um motivo forte no centro... Fora isso, acho que agora a pintura está muito mais desembaraçada, o que fica evidente, para mim, com a série Bestiário, da qual fazem parte aquelas pinturas intituladas Dilúvio.

BD O Bestiário veio também desse imaginário da Idade Média do qual me aproximei a partir de 2014, através das iluminuras. Acho que nessa série a liberação se amplia de tal modo que me trouxe outros problemas, porque até aquele momento eu sempre tentava buscar um equilíbrio para não transbordar. Acho que se passar do ponto, se esticar demais a corda, alguma coisa meio indefinida descamba. Então, é um conflito que permanece vivo – encontrar alguma medida entre liberação e contenção, principalmente no gesto pictórico. A ideia do gesto ainda é uma questão em aberto.

O gesto na trajetória da pintura abstrata, moderna e contemporânea é protagonista de um conflito narrativo entre a expressão e a negação de um sujeito lírico. Não acredito que a arte seja feita para expressar um absoluto da liberação da vontade, mas ao mesmo tempo ela passa pelo desejo do artista e por sua tentativa de capi­ta­lizar um pensamento, uma coisa, uma expressão. As pinturas intituladas Dilúvio são desdobramentos desses conflitos que permanecem desde o início do trabalho, em 2006. Então, o que venho buscando compre­ender é uma possibilidade de expansão da experiência pictórica que não seja protagonizada apenas pela gestua­li­dade expressiva, mas também por outros modos de fazer igualmente gastos.

Essa ideia de expansão é importante para mim. Ainda é algo vago, em construção, mas que caminha na direção de trazer uma experiência de deslocamento, de transformação, de expansão no sentido da percepção. Criar um movi­mento de reflexão sobre a relação do nosso corpo com a pintura e o mundo em que vivemos.

O Bestiário foi o momento mais ilustrativo da minha trajetória e não tive receio de pegar uma iconografia de mundos imaginários, de terrores psicológicos e movimentar meu trabalho nesse território. As preocu­pações que eu tinha antes sobre o gesto, sobre o que é a pintura, o que ela pode ser e como ela se localizava no nosso tempo, geravam uma tensão entre a experiência do meu corpo e uma herança cultural da minha formação. Essa relação conflituosa com a cultura construída, aprovada e chancelada por uma parcela da sociedade se diluiu e introjetou dentro do trabalho. Quando comecei essa série, em 2016, o Brasil passava por um momento complicado, que produziu mudanças de paradigmas na estrutura social do país. Tivemos um pacto social rompido por conta de um golpe de estado articulado pelo Congresso Nacional, pelo Judiciário, por uma parcela significativa da imprensa e por setores da sociedade empresarial e civil, que derrubou ilegi­timamente a presidenta da república Dilma Roussef. Aquilo ainda não foi resolvido; não é um ponto pacífico na nossa sociabilidade. O que submergiu disso foi um estado de fragilidade, um espírito antidemocrático e uma asquerosidade social que, através de um grande acordo nacional e brechas da própria constituição, jogaram o pacto social na lata do lixo. Comecei a olhar para dentro das questões sobre pintura, sobre ser artista e pensei “cara, que preocupações são essas?”. A sociedade estava e está em um movimento tão brusco e tosco que essas questões ganharam outro lugar em mim. O golpe de 2016 foi tão absurdo que esse sentido de liberação se acelerou e se instalou fortemente no meu trabalho. De alguma maneira, tentei lidar com essa coisa turva da capacidade humana de produzir algo aterrorizante e asqueroso, mas, apesar de ter produzido trabalhos de que gosto muito, acredito que falhei. Não dá para nomear e disputar isso no plano da minha linguagem.

AW O Bestiário também cumpre um papel interessante no que estamos falando. Além de tudo isso que você acabou de dizer, também vejo essas pinturas como uma formulação de algo que te acompanha desde sempre: uma espécie de presença do desconforto, do desagradável no seu trabalho. Numa conversa com o Cadu no livro você fala de “uma sensação meio enjoada”, já em relação àquele monocromo amarelo (feito em 2010), que acredito ser uma manifestação parecida da mesma idéia apresentada no Bestiário e nas pinturas desta exposição (Virá, 2020). É como se essa vontade que se mostra sob diferentes aspectos ao longo do tempo estivesse sempre por perto. É claro que existem todos esses disparadores que você acabou de eleger – e o fato de que nem sempre um disparador encerra todos os lugares que o trabalho depois de pronto pode alcançar, não é mesmo? Se o golpe foi o que disparou esses trabalhos, eles podem chegar também em lugares muito diversos, diferentes do que os originou. Acho que, de certa forma, essa série te manteve próximo do que estou falando sobre essa ideia de desagradável. Dito isso, o que você entende por desconforto olhando para sua produção?

BD A palavra desconforto é boa, porque já surgiram para mim termos como “estranho”, “desagradável” ou “violento”. Quando comecei a pintar, eu queria ser um artista da metafísica, da cor íntima, da dilatação do tempo, de uma espécie de desaceleramento da experiência urbana e midiática. Admirava artistas com essas características, mas fui descobrindo que eu não era esse tipo de artista. Então, o primeiro desconforto foi perceber que eu não era um artista da metafísica, da repetição visual, mas sim um artista da variação, e isso, no contexto da minha formação e idealização, foi desconfortável. Desde a minha primeira exposição individual, em 2010, os nomes, isso já estava posto, mas o entendimento dessa variação como construção de uma poética, de um lugar que passou por uma metapintura e que falava da condição de pintar era o que estava em jogo.

Enxergo esse desconforto de algumas maneiras. Uma é por essa variação que se repete nas exposições. Prezo muito pela autonomia de cada pintura, o fato de que cada uma delas tem um corpo, uma fisicalidade, essa autonomia da linguagem. Mas, ao colocá-la dentro de um espaço expositivo com outra pintura, que também tem a sua autonomia e sua diferença, isso causava ruído, um desconforto. A variação na aparência das pinturas causa um conflito que me interessa. Entendo o conflito como um campo de duas possibilidades: do diálogo ou da guerra. Ambos possuem uma dimensão política. Acho que transitei por esse rumo dentro do trabalho, nas relações entre as pinturas, entre as exposições e isso foi estimulante e ao mesmo tempo desconfortável. Hoje não é mais. Está começando a se assentar e se afirmar.

JAR Falamos até aqui de mudanças pelas quais o trabalho atravessou em dez anos de trajetória, e me lembrei de alguns adjetivos que são atribuídos com frequência à produção do Bruno, que, segundo essas qualificações, seria heterogênea, diversa, plural. Há razão nisso, sem dúvida. Mas também considero que essa variedade de imagens, soluções, gestos, feituras não significa ecletismo. Tem muito de exercício, de algo tentativo, nessa multiplicidade, um ânimo de testar possibilidades variadas.

Junto com isso, a ideia de uma coleção de imagens acompanha o andamento da produção do Bruno, desde o começo – a ideia de que o trabalho descende de coleções de imagens, ao mesmo tempo em que constitui, por suas decisões, uma coleção de imagens. Essa coleção, de algum modo, antecipa não só figuras, mas também os raciocínios, os modos de pensar. Dá pistas sobre o fato de o trabalho resultar, em parte, de estudos de imagens diversas e que extrapolam o campo da arte.

Então, de fato, sempre houve diferenças grandes entre uma pintura e outra, a cada vez que o trabalho era mostrado em conjunto. Atualmente essas diferenças, ou aquilo de que você falava como “conflito”, aparecem em uma mesma obra. Cada pintura é, hoje, mais composta que antes – às vezes, como eu disse, motivos e proce­di­mentos que são aparentemente contraditórios surgem lado a lado, em uma mesma tela.

Outro aspecto dessa variedade informa, ainda, a erudição do trabalho – culto, estudado, ilustrado. Mas não porque faz referências diretas a outros artistas, e sim porque ele internaliza um interesse pela história da arte e parece mesmo revigorar-se no estudo dessa disciplina. O quero dizer é que são evidentes aqui embates com certas obras, com certos artistas, mas também com a história da arte.

Mas, retomando uma questão, é interessante pensar esse caráter plural do trabalho considerando, também, que o processo de produção do Bruno já não é mais tão planejado quanto antes. O fato de agora o trabalho partir para o ataque sem nenhum, ou com vários materiais prévios ao mesmo tempo amplia sua margem para o imprevisto. Se o trabalho antes parecia, reiteradamente, zerar os passos anteriores de sua marcha, para lidar com um repertório aparentemente sempre mais amplo de escolhas, agora ele parece estar à procura de instituir, a cada vez, as condições para a realização de uma pintura que seja sobretudo desenvolta e desembaraçada, do começo ao fim de seu processo de produção; uma pintura que lide, ainda, com materiais preexistentes, emprestados, mas por meio de uma ação em aberto, sem amarras nem compromisso com este ou aquele autor, com esta ou aquela vertente, com esta ou aquela tradição de pintura.

Numa tela como Cabeça de ferro (2019), por exemplo, há o elemento central que lembra os rios da Leda Catunda, esse campo inferior que traz reminiscências de pinturas do Jorge Guinle, essa borda com estampas que talvez reportem à obra do José Leonilson… São materiais diversos que concorrem para a construção da pintura, que, repito, parece mais desenvolta na lida com o vocabulário desses artistas, sem reverenciá-los – ao contrário, de maneira solta, e sem programa prévio, sem a tarefa de adaptar imagens, sem compromisso com determinada linguagem ou gênero.

AW Você também se coloca numa enrascada, no bom sentido, que tem muito a ver com essa mudança de procedimentos. Você tenta se livrar de muita coisa para pintar – tanto ao fazer o exercício de pensar o trabalho com certo distanciamento quanto no momento do ateliê, mesmo. E o lugar em que você se põe, acredito, tem muito a ver com uma espécie de ansiedade. Você tenta tirar os seus pontos de apoio o tempo todo, sendo que você, mais que em diversos outros casos, começa com a pintura apoiada em muitos pontos, como o Zé acabou de dizer. Uma vasta coleção de procedimentos, uma vasta coleção de referências, uma vasta coleção de imagens do mundo. Então vem um esforço de tirar aos poucos as coisas do caminho, e sabemos o quanto isso é complicado. Porque sei que você chega num momento – que pode ser falso ou verdadeiro – em que você fica meio sem nada e pensa “putz, e agora, o que eu faço com isso que acabei de fazer?”. Você poderia fazer isso de maneira anedótica, poderia ser um comentário irônico, jocoso, mas não acho que você use desse jeito. Quando você usa o dripping, por exemplo, não acho que você esteja acessando uma maneira de pintar como alguém que busca na prateleira do supermercado um procedimento disponível. Vejo mesmo como o possível reflexo de um embate que nasce da tentativa de esvaziar o campo de atuação.

JAR Vai levando um campo inteiro para uma sinuca de bico.

AW É sempre uma sinuca de bico. É uma raiz muito importante e acho que essa ansiedade está nas pinturas, se relacionando diretamente com o desconforto de que falamos, essa coisa incômoda que não sabemos dizer exatamente o que é ou onde está.

BD Acho que tudo isso que vocês colocaram está presente nos trabalhos: uma ideia de coleção de imagens, de coleção de possibilidades de pintar e nesse sentido, desde o início, me interessei sobre o que a pintura pode ser. Mas vale ressaltar que existe uma redução aí, porque não lido com a pintura em um campo mais expandido. É o que a pintura pode ser dentro desse meio tradicional, tinta sobre pano, o que a pintura pode ser hoje depois de toda a suas histórias, de um questionamento sobre a sua potência de responder a um mundo pós-industrial, mediado por imagens fotográficas, de TV e de internet. O que me veio com mais força de pensamento foram questões de uma certa história da arte e o desenvolvimento da pintura como manifestação humana em outros períodos e contextos. Citei aqui as iluminuras, mas me interesso muito por pintura rupestre, por pintura egípcia, enfim, o interesse é muito variado, mas dentro desse campo. É um interesse passional. Não transito nele de maneira estudiosa e também não escrevo sobre ele. A minha vida acadêmica é curta. Não tenho pesquisas sistemáticas, mas gosto de ver e ler sobre essas coisas.

JAR Certo. Mas você também sistematiza o pensamento para, por exemplo, dar aulas...

BD Meu interesse em dar aula vem da possibilidade de criar espaços para exercer esses estudos e me propiciar um outro ofício, um estímulo a organizar as ideias e verificar essa organização com outras pessoas. Eu me alimento desses encontros e tento realizar abordagens abertas, em que todos tenham voz e compartilhem seus conhecimentos e investigações. Apesar de as experiências serem muito diversas, existe um ponto onde todos possuem um imaginário em construção sobre o mundo e sobre as histórias da arte. Acredito no conhecimento como um direito de todos, mas, para que haja acessos e construções, é necessário haver oportunidades e interesses.

Existe todo esse campo de validação e difusão do conhecimento que passa por uma estruturação social para formar e circular as ideias. Você precisa conquistar ou criar esses espa­ços físicos – escritas, publicações, universidades, museus, centros culturais – para conquistar o imagi­nário das pessoas. Eu acho essa construção mais potente quando o jogo é aberto, quando as possibilidades materiais dessa construção são mais abrangentes e os espaços de acesso e poder são compartilhados.

Gostaria que a minha pintura alcan­çasse algo dessa dimensão pública de uma forma desenvolta, como o Zé colocou. Que ela fosse pra rua, sabe? Que fosse uma coisa pedestre e pública, não apenas no sentido do acesso a sua presença física, mas na circulação das ideias, de uma sensibilidade, de uma pulsão. Acho que tento fazer isso em uma dimensão íntima dentro do ateliê, e me interesso cada vez mais por parti­cipar dessa construção no espaço público, pela possibilidade de contribuir para a existência desses espaços de expansão.

JAR Bruno, voltando ao impacto do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em sua produção, em primeiro lugar, considero admirável o fato de não haver uma reação discursiva do trabalho ao episódio que o mobilizou – o fato de a produção não confundir inconformismo com uma expressão panfletária, de lemas ou emblemas. Pelo contrário, parece que a obra internalizou esse inconformismo nas formas da pintura. Mas o que chamou mesmo minha atenção no que você disse foi a associação entre o rompimento de um pacto político e social e a liberação que você diz levá-lo para longe de “questões da pintura” com as quais antes você costumava se debater. A minha pergunta é: que pensamentos, que partes, que princípios do seu trabalho estavam atados à ordem social e política brasileira antes? E como você enxerga o campo e as possibilidades de inscrição social da arte hoje no Brasil? Como você vê o lugar social do trabalho de arte nesses tempos? Você diria que há especificidade para a linguagem da pintura nesse contexto?

BD Concordo com o que você disse sobre o trabalho não ter ganhado uma dimensão discursiva por conta de um episódio político que afetou a vida da sociedade brasileira inteira. Mas, para mim, foi perturbador perceber que o rompimento do pacto social tensionava também estruturas de legitimação sobre visões da arte, de sua socia­bi­lidade, circulação, e politização do gosto dentro do campo das artes visuais. Isso se intensifica de 2016 até aqui, e acho que foi um caminho de uma tomada de consciência mais profunda sobre o que é ser um cidadão, que me levou a ter outra consciência sobre o que é ser artista. Não dissocio essas duas instâncias e passei por um entendimento que não exclui as autonomias de cada uma delas. As questões próprias da linguagem da pintura, da imagem e suas histórias permanecem fundamentais no traba­lho, mas hoje elas convivem com questionamentos sobre estruturas sociais e culturais, que sempre foram precárias, insuficientes e excludentes. Parece contraditório, porque é como se a partir de uma experiência social traumática, a minha experiência de sujeito artista se acelerasse e alguma coisa daquela reflexão sobre questionamentos específicos da linguagem pictórica perdesse a importância, ao mesmo tempo em que passou a agir com mais potência dentro dos trabalhos. Isso, que já estava em conflito, se dissipa e o que fica é essa camada de pensamento sobre como a arte ou a pintura é trabalhada dentro da sociedade, como ela se estratifica nessa mecânica de um aparato cultural limitado que envolve produção, circulação e atitudes de admiração.

JAR Uma das motivações, então, foi extrapolar – ou romper – os limites dessa estratificação?

BD Eu não sei se é extrapolar esses limites, porque isso vai além da minha experiência individual e precisa ser uma atitude coletiva e pública. O que quero dizer é que me localizo como um artista que teve a oportunidade de passar por uma formação em faculdades de artes, instituições, ateliês de artistas, que convive com outros artistas de diversas idades, que vê muita exposição, que teve o privilégio de viajar para ver arte... A minha formação, além de muito centrada em uma parcela da arte moderna e contemporânea brasileira, tem um viés europeu e estadunidense. Parte da arte brasileira tem isso e se debate com isso há pelo menos um século. Precisei olhar para o lugar que ocupo dentro da sociedade, para a estrutura cultural que formou meu pensamento visual e entender que faço parte de um processo histórico coletivo. Como as artes visuais se organizam materialmente dentro da nossa sociedade? Como é que se organiza a difusão desse imaginário? Eu diria que o lugar social da arte é o lugar de construir, de colaborar na construção do imaginário de um indivíduo, de um grupo, de um país ou de um mundo. O campo das artes visuais ainda é muito apartado da sociedade brasileira. Temos um mercado com uma estrutura forte, mas com pouca representatividade numérica em relação à quantidade de artistas existentes e com pouco espelhamento da diversidade cultural brasileira. As instituições estão muito dependentes de parcerias público-privadas para se manterem e isso é um reflexo da ausência de políticas públicas para o setor. O saldo disso é uma espécie de sequestro da possibilidade de construção ampla e democrática desse imaginário através das artes visuais. Já tivemos momentos em que isso foi pensado com intenções mais públicas, porém não menos classista nas estruturas. Todo o modernismo brasileiro da década de 1920 a 1950, o neoconcretismo, o tropicalismo, as revistas Malasartes, A parte do fogo, a participação de Paulo Sérgio Duarte, Ferreira Gullar e Iole de Freitas na FUNARTE, no INAP (Instituto Nacional de Artes Plásticas) no final do anos 1970 e início dos 1980 foram iniciativas que abriram espaços para a arte moderna e a contemporânea circu­larem e serem debatidas.

Não acho que seja tão relevante para a pintura hoje ter algum com­promisso com uma especificidade da sua linguagem. Isso já é uma conquista da modernidade. Já podemos entender a pintura não só como uma repre­sentação, mas também como uma manifestação de modos de fazer, de temperamentos que surgem através do modo como você manipula os materiais, as ferramentas, a matéria... Para mim, o compromisso com essas especificidades deveria ser mais traba­lhado na área da educação, nos meios de difusão do conhecimento e cultura. A autonomia da arte foi uma conquista importante, mas precisa ser difundida sem que pareça alienada dos processos de cidadania, separada das realidades sociais e culturais das pessoas.

JAR Era isso que pressionava uma compreensão da atividade artística orientada por uma tradição “ocidental”, europeia e estadunidense?

BD Não exatamente. O que pressionou essa compreensão foi uma ideia de violência, que ainda é muito difusa pra mim, e não localizo essa presença como uma característica da pintura brasileira. A violência é um elemento importante no Cinema Novo, por exemplo. A linguagem e a presença do Glauber Rocha, que inclusive trata disso no texto “Eztetyka da fome”, é uma coisa violenta. Acho que o que pressionou foi sentir com mais força algo que já percebia na sociabilidade e na história do Brasil: uma sociedade que acredita na pena e na violência para resolver os mais variados conflitos sociais e que nunca conseguiu refle­tir amplamente sobre fenômenos históricos como a escravidão, o coronelismo, a ditadura militar, etc. O caldo disso é uma cultura social escravocrata, racista, autoritária, machista, construída na lógica punitiva, inquisidora, colonialista e genocida em relação aos povos ameríndios e à população negra. A compreensão veio do desconforto com a própria realidade e da necessidade de responder a isso com a linguagem do meu trabalho de uma maneira não conformada, mas também não panfletária. Então, é um pouco esse lugar que me trouxe desconforto. Precisamos transitar mais para sair dele. É uma condição nossa que precisa ser mexida.

AW Quando você falava da sua vontade de ser um artista da metafísica, da cor íntima, da dilatação do tempo, e que foi desconfortável descobrir que talvez você fosse um pouco mais estranho que o modelo que estava posto naquele momento – ou que as pinturas ganhavam mais força à medida que se moviam dentro de um lugar mais conflituoso, menos apaziguado, continuo não sabendo se desconforto é a palavra exata para isso. Penso, inclusive, que a dificuldade de apreensão desse termo se refere ao lugar de onde vem uma parte muito interessante dos trabalhos. Você foi ficando mais à vontade em conviver com essa estranheza e com essas diferenças, não é?

BD É isso! Acho que fui ficando mais à vontade para criar o meu trabalho, a ser mais permeável ao que acontecia dentro do ateliê. Eu não sou um artista que tem um projeto ou uma ideia bem definida sobre o que fazer, mas também não sou um artista do acaso. Então tem uma coisa de trabalho, de dia-a-dia, de pausas, de reflexão e ajustes que formam as pinturas. É a partir do que faço, reflito, acumulo e descarto que as coisas se dão. Estou com quase quinze anos de produção, e a percepção é a de que estou começando agora.

JAR Por volta de 2010, uma das qualidades do seu trabalho, na minha opinião, era a angústia que a pintura deixava entrever, algo como um “não posso ir adiante, preciso ir adiante”. Além disso, o trabalho carregava de bom grado um peso histórico em cada tela que apresentava. Não era sofrido, mas era evidente que a pintura se movia por impasses. E o que eu vejo, hoje, se parece com um “objeto ansioso”, para usar o termo do Harold Rosenberg. Ansiedade daquilo que não se deixa satisfazer, enquanto arrisca direções diversas para construir uma só imagem.

Essa ansiedade é também o que deixa visível o processo de realização das pinturas recentes. A acumulação de soluções diversas, agrupadas em áreas diferentes da tela, com o resultado meio em aberto. Há muitas marcações que parecem o início de um preenchimento, algo que não foi concluído, muitas formas abertas, sem contorno. Tudo isso denota ansiedade, como se o trabalho fosse interrompido, precipitado, em meio a seus processos, ainda no fervor da labuta. E esse aspecto aberto, aceso, ligado, confere vivacidade ao trabalho. Nada chega pronto, completo, acabado, chega com pontas ainda por articular. Essa talvez seja uma das principais qualidades do trabalho hoje. Sem querer hierarquizar, “ontem era melhor”, “hoje é melhor”, mas acho que essas diferenças estão bem marcadas.

AW Houve também uma mudança na construção dos trabalhos que favoreceu esse tipo de feitura. Em pinturas anteriores (2015/16/17), é possível perceber que muitas vezes o Bruno usava pincéis maiores, gestos mais largos, às vezes resolvendo de uma só vez uma grande área de tela. Acho que a última camada da pintura aparecia mais rápido. Alguns trabalhos eram feitos por inteiro em uma única sessão. Já em algumas pinturas novas (como Fuzileiro, 2019) você parece fazer o movimento contrário. Em vários momentos você aumentou a escala, trabalhou com a tinta mais diluída, pinceladas menores, com mais camadas e mais sessões. Parece que nem sempre você espera que apareça de pronto um movimento que possa resolver a pintura de uma vez só. Algumas inclusive ficaram encostadas algum tempo no ateliê, esperando para ser resolvidas. Isso muda um pouco o jogo, conviver dois ou três anos com uma pintura... Essa mudança também parece ir ao encontro de vários pontos que o Zé colocou, como se favorecessem a simultaneidade de questões e procedimentos contraditórios num mesmo trabalho. Nas pinturas parece existir um acúmulo de “coisas a se resolver”. Elas não são um projeto calculado: é como se na relação do sujeito com a pintura tivesse ocorrido uma transmutação, uma química, e a inadequação passasse a ser o método. Não é uma questão existencial, nem afetiva, mas originalmente formal. Se as pinturas são um agrupamento de conflitos que convivem sem uma intenção de pacificação, penso que é sobre esse descompasso que elas se apoiam, é dele que retiram sua força. A ideia do trabalho se esquecer um pouco das conclusões das pinturas anteriores pode ser muito potente, apesar da dificuldade que esse movimento traz consigo. . Há algo nas pinturas que dá a impressão de que foi preciso esquecer o que você acertou no trabalho anterior para poder começar o próximo. Poderíamos relacionar isso com uma sensação de afunilamento, como se você mesmo fosse gradualmente tentando inventar um lugar sem saída, para, a partir disso, achar um novo caminho. As pinturas parecem lidar com uma ideia de esgotamento. Como se o gesto de fazer uma coisa consumisse aquela coisa no momento em que ela foi feita, não fazendo sentido repetir aquele procedimento, ou repetir aquela pintura. É sempre preciso partir para uma outra.

BD Acho que isso tem a ver com essa ideia de manter algo vivo, algo que ainda estou tentando elaborar. Talvez essa ideia de esgotamento e inadequação como método já estejam na linguagem do trabalho.

JAR Quero retomar pontos para distinguir o que chamei de erudição e o que você, Bruno, entendeu como habilidade técnica. Quando digo que o trabalho é culto, erudito, considero as informações de repertório, os conhecimentos conceituais, além dos técnicos, de feitura, que instruem a produção – e nenhum desses traços exclui seus desejos pedestres, de que as pinturas tivessem também uma presença na rua, como você disse. Mas no que se refere à realização, penso que uma característica impor­tante do trabalho está em deixar evidentes os limites de sua destreza, de sua habilidade técnica, em expô-los com franqueza, em operações que são também engenhosas e inesperadas. É mais ou menos quando o imperfeito, o inconcluso, ou o dissonante, quando os acidentes, as grosserias, coincidem com a ideia de uma vivacidade, sobre­tudo porque resultam de decisões impetuosas, que conferem, por sua vez, vigor aos resultados. Ou seja, como o Alê falou: o trabalho está mais aberto ao imprevisto, e os limites técnicos aparecem de um modo franco, constitutivos da obra – nos acidentes, nas manchas, nos borrões, nas descontinuidades, nas rebarbas à vista.

BD A valorização da habilidade técnica em geral está ligada ao sentido de construir algo difícil, uma valorização da dificuldade como valor a ser admirado, uma distinção muito clara entre conseguir ou não fazer algo especial. O mesmo raciocínio serviria para falar sobre erudição. Gosto mais da idéia de vivacidade, porque se relaciona com a ideia dos processos abertos, de ter um frescor e que identifico como uma ética do fazer, contra a habilidade, contra esconder como foi feito o que está na sua frente. Isso vem também da minha formação, do meu entendimento sobre os concretos e neoconcretos, sobre a vanguarda russa, os minimalistas norte americanos, de artistas como Amilcar de Castro, Vladimir Tátlin e Donald Judd. Acho que herdei algo desse pensamento, que vem de um modo esteticamente oposto no meu trabalho, – vem através de acúmulo e não de um procedimento sintético, com uma clareza industrial. Vem de maneira caótica, de difícil apreensão imediata, e talvez seja esse movimento exigido da percepção que se relaciona com a vivacidade.

AW Sobre essa possível inabilidade técnica, acredito que ela também tenha participação no tipo de variação que as pinturas trazem, nas diferenças entre umas e outras. Existe uma coisa meio “desajeitada” em cada uma delas que faz com que não obedeçam a uma estranheza muito programada. Em geral, os trabalhos habitam dois lugares ao mesmo tempo: as mais estranhas guardam um pouco das mais tranquilas e vice-versa.

BD Eu não diria que elas são tranquilas e estranhas, mas sim bonitas e estranhas. Não consigo separar essas duas coisas. Mas isso vai se mexendo, e retorna para a questão da apreensão e vivacidade. Eu procuro um terreno não tão estratificado e existe uma dimensão de risco aí. Acho interessante não ser algo dado a concepções tão pré-estabelecidas, porque a percepção sobre as pinturas muda. Tento colocá-las em um lugar de abertura, onde tudo aquilo que seria definível convive com coisas que ainda desconheço.

JAR O título da exposição, Virá, também sugere algo transitivo, com olhos adiante.

BD Acho que todas as exposições que fiz de 2014 até 2020 foram tentativas de me deslocar da percepção que tive sobre a produção apresentada na exposição e, de 2013. O caldo que aquilo me deu foi algo desidratado, estéril, mudo. Acho que só agora eu saí dessa percepção. As pinturas atuais pinturas surgem dessa trajetória, e acho que o título, Virá, afirmado em um momento tão ruim – pandemia, avanço da extrema direita, processos políticos desastrosos no Brasil e no mundo, retiradas de direitos e conquistas sociais – mostra que a minha posição é de luta, de transformação e de possibilidade. Vivo essa posição – não só dentro do meu ateliê. Vivo isso dentro da minha atuação, no modo como me desloco na sociedade, nas coisas que eu faço para além da pintura, com as pessoas com quem eu construo um outro lugar em dimensões micropolíticas, mas que vai crescendo. Isso que vivemos hoje é pendular, vai passar e acho que a sociedade civil tem um protagonismo importante neste processo histórico. É uma responsabilidade nossa formular um novo pacto social. Eu vejo por uma óptica da construção e do trabalho. Tem muita coisa por fazer, dentro da minha pintura, entre as pessoas, nas relações no meio de arte – e isso me anima.

Este texto foi desenvolvido a partir de duas conversas, realizadas no mês de setembro de 2020, no ateliê do artista Bruno Dunley e na exposição Virá, na Galeria Nara Roesler, São Paulo.